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Blog Clara Averbuck

Nem um passo para trás

Clara Averbuck

10/10/2018 20h03

Eu estou exausta.
Eu e quase todas as mulheres que conheço, pra não dizer todas.

Nasci em 79. Meus pais são artistas e sempre foram muito posicionados politicamente. Lembro do movimento das diretas e lembro do impeachment do Collor, quando saí pela primeira vez às ruas, achando que estava arrasando, com a cara pintada e sede de uma justiça que nunca veio. Lembro dos showmícios e da ideia incrível de um país onde todos pudessem ter oportunidade.

Lembro do meu pai tocando em showmícios. Lembro do clima sério, firme, mas carregado de esperança. Estávamos saindo de uma ditadura militar onde pessoas como meu pai, artistas, músicos, escritores, pensadores e políticos tinham suas liberdades cerceadas, suas obras censuradas, algumas de suas vidas tiradas, e, vendo aquele movimento, parecia mesmo que aquilo tinha chegado ao fim.

Naquela época eu ainda não escrevia. Ou melhor, escrevia uns poemas de amor bobos para garotos igualmente bobos da minha classe, mas, um tempo depois, minha consciência foi despertando. Quer dizer, eu nunca deixei de escrever sobre amor, mas outras coisas, como liberdade, identidade e autonomia foram se tornando mais urgentes e importantes.
E tudo isso é político. Eu só fui entender mais tarde, depois de já ter escrito sobre essa trindade, liberdade, identidade e autonomia, que sem democracia não dá pra exercer plenamente nenhuma das três.

À medida que fui crescendo, fui me afastando do que eu achava que era a política. Mal sabia eu que estive sempre, sim, fazendo política, já que toda regra que você quebra, todo padrão que você peita, toda voz que você levanta contra as opressões é, sim, política. Tudo é político quando você é uma mulher. Querer andar na rua em paz e sem assédio, reivindicar direitos sexuais e reprodutivos, ter nosso trabalho valorizado, respeitado e pago igualmente e poder ser a mulher que quiser fora do conjunto de regras que nos é apresentado, tudo isso é político.

Eu não sabia o que era papel pré definido de gênero, mas sempre me revoltou ter "coisa de mulher" e "coisa de homem". Eu sabia o que era machismo porque sou gaúcha e basta ser mulher e estar lá pra sentir isso na pele, mas não sabia que eu mesma reproduzia conceitos machistas. Eu não sabia o que era opressão, mas toda injustiça contra indivíduos ou grupos fragilizado sempre me despertou uma imensa raiva e me deixou com lágrimas nos olhos.

E depois com sangue nos olhos, quando fui aprendendo e me dando conta de que estava, estávamos longe, nós, mulheres, de viver plenamente. Foi quando descobri o feminismo e tudo começou a fazer sentido. As coisas que aconteciam e eu não sabia explicar, as vezes que tentaram me calar ou me ignorar e eu achava que fosse pessoal, as vezes que meu trabalho foi diminuído pelo seu teor e sua matéria prima quando ué, alguns dos maiores escritores trabalhavam assim, por que eu não poderia?

Foi maravilhoso. E horrível. Maravilhoso porque as coisas finalmente faziam sentido, era como se uma névoa tivesse se dissipado das minhas vistas e eu podia enxergar com a clareza que sempre almejei. E horrível, porque, ao finalmente enxergar, não era nada bonito o que tinha pra ver.

Não era bonito e precisava ser mudado. Conversando com outras mulheres e escrevendo para elas fui descobrindo que era esse o caminho: escutar e ser escutada, trocar experiências e ver que estávamos todas no mesmo barco. E pior, esse barco tinha andares de privilégios. Eu sou branca, afinal, e tenho, sim, privilégio de não sofrer racismo aliado ao machismo que já sofro. As mulheres negras sofrem essa dupla opressão. E com elas eu fui aprendendo mais e mais.

Nos últimos anos parecia que não era possível nos parar. Mesmo com um golpe misógino, mesmo com tantos retrocessos, mesmo diante de adversidades mil, ninguém podia calar nossa voz. Não existe mais como. Muito menos a voz das próximas gerações. Os movimentos, as passeatas, a mudança sutil nas representações na dramaturgia, até um certo esvaziamento das nossas pautas pela publicidade usando palavras de ordem pra vender batom, tudo parecia mesmo não ter volta.

Mas eles, os conservadores, os detentores do poderzinho, os misóginos incorrigíveis, eles jamais foram tocados por isso ou tiveram abaladas suas certezas caquéticas e rançosas de que mulheres são fracas, inferiores, que a nós cabe apenas um cercadinho na existência, o da mulher correta, que anda na linha e jamais contesta.

Essa espécie tosca de homem, impregnada de masculinidade tóxica e frágil, tão frágil que treme ao ver homens que não seguem a cartilha do heterossexual, treme tanto que faz questão de mandar um "abraço hetero" porque imagina ser confundido com um viadinho capaz de estar em contato com suas emoções sem que sua macheza esteja em jogo, tão frágil que só consegue existir através da truculência e da violência, tão frágil que se sente ameaçada diante da existência de qualquer coisa que difira deles.
Eu estou exausta, e exaustas estão as mulheres à minha volta na tentativa de entender e explicar o inexplicável. Como, como um misógino assumido, um homenzinho desprezível, um ser abjeto que tripudia da nossa cara e de qualquer valor democrático, um racista, um classista, um homofóbico assumido, um homem que fala que não vai estuprar uma mulher porque ela é "feia" e não merece (as "bonitas" merecem, então?), um sujeito que animaliza pessoas negras calculando seu peso em arrobas e dizendo que não servem nem pra procriar, que afirma que seu filho não namoraria uma negra porque não vive num ambiente de promiscuidade e que preferia ter um filho morto do que "namorando um bigodudo", que tentou tirar o direito de trans e de travestis de usarem seus nomes sociais, um homem que, por todos os santos, homenageia um TORTURADOR em plena câmara dos deputados, que se diz a favor da tortura, da pena de morte, de bater em crianças "meio viadinhas", como se orientação sexual pudesse ser corrigida, um homem que fez nada além de enriquecer em 28 anos como deputado, COMO essa pessoa está concorrendo à presidência da república? E ganhando?

E como existem mulheres apoiando essa aberração? Como eu já disse, nenhuma mulher está livre do machismo e, infelizmente, algumas só vão aprender quando passarem por situações vexamosas, e vai acontecer, infelizmente, vai acontecer. Não porque o candidato, pessoalmente, vai ofendê-las ou agredi-las. Quer dizer, pode ser que aconteça. Mas certamente vai acontecer no dia a dia porque todo o misógino, todo homem que odeia mulheres independentes saiu da toca e não tem vergonha nenhuma de exercer seu machismo a plenos pulmões e colocar pra fora o que realmente acham, sem verniz algum, assim como todo racista, todo homofóbico, todo o intolerante.

E não venham falar que NÓS temos que ser tolerantes com intolerância. Se o seu discurso e sua ação ameaçam minha liberdade e minha integridade, se comprometem a minha existência, como é que eu vou ser "tolerante"? Seria tola. Idiota. Não sou cristã pra oferecer sequer uma face, muito menos a outra.

Estamos exaustas.

Mas não vamos chorar. Não estamos chorando. Não estamos nos curvando ao macho de 1930. Ele sendo eleito ou não, não tem essa de "aceita que dói menos". Aceitar o que? Ser diminuída? Aceitar que é correto ganhar menos do que um homem na mesma posição? Aceitar ser humilhada e categorizada? Não, não vai ter isso. Esse homem e seus reflexos são o suspiro final e furioso de um estereótipo, uma caricatura grotesca de macho que só serve a eles, que mal serve a eles. Não vai acabar o feminismo e muito menos "qualquer tipo de ativismo", como ele afirmou em seu pronunciamento.

Vai crescer. Vai aumentar. Vai ter que ser assim.
E difícil ter forças, mas temos que ter, sim. Precisamos. Não podemos derreter em nossas cadeiras com o celular na mão enquanto notícias desalentadoras rolam na tela. Precisamos resistir, blindar nossas almas, não nos deixar violar por essa nuvem de ódio que assola este país. Hoje mesmo eu vi um homem dentro de um carrão gritar para uma mulher negra que pedia trocados sentada na porta de um mercado: AQUI É SALNORABO! Assim mesmo, na rua. Anteontem o Mestre Moa do Katendê foi assassinado por dizer que votaria no Haddad, e não foi por acaso, foi um homem negro, mestre de capoeira, ligado a suas raízes. É muito específico. Quem você acha que vai perder mais? Quem você acha que vai apanhar mais, morrer mais? Na escola dos irmãos da minha filha teve uma eleição como exercício e o mais novo, que não se deixou acuar e "votou" no Haddad, foi perseguido e ameaçado por outras crianças de SETE anos. "Você vai morrer", eles diziam. Sete anos. Não param de pipocar relatos de homofobia, de violências de todos os tipos contra cometidas por eleitores daquele candidato e em nome dele. Sempre o nome dele é evocado: ele vai acabar com vocês, ele vai acabar com vocês, ele vai matar vocês para justificar que quem quer nos matar são eles mesmos.

Nós precisamos sobreviver, estamos usando nossas forças para isso. É muito custoso. Por isso estamos tão cansados, tão cansadas. Explicar o inexplicável nos deixa assim. Mas precisamos vencer esse medo e virar esse jogo. Não apenas o jogo político, mas o jogo da existência. Da resistência. As minorias são a maioria, afinal. Precisamos nos cuidar. Não nos deixar afogar pelas notícias. Não abrir mão dos prazeres cotidianos, do amor, do sexo, da arte, do espírito e do corpo. Eu sei que é difícil quando até sair na rua se torna perigoso. Mas vamos fazer o que? Sucumbir ao medo? Viver na clausura e deixar com que as trevas tomem conta? Não vai ser assim, não vai ter isso, somos muitos, estamos juntos e não vamos deixar que nos transformem em fantasmas e roubem nosso direito de existir assim.

Estamos juntos, estamos juntas e vamos seguir assim. Nunca foi fácil, mas não chegamos até aqui e passamos o que passamos para retroceder. Lembrem disso.

Sobre a autora

Clara Averbuck escreve desde sempre e começou a publicar na saudosa internet discada. É uma das pioneiras da blogosfera brasileira e tem sete livros publicados e adaptados para cinema e teatro. Já escreveu na Showbizz, Superinteressante, TPM, Claudia e muitas outras, foi colunista de jornais e revistas Brasil afora, tem gato, cachorro e filha adolescente, bebe e gosta, usa unhas de acrílico, é uma apaixonada praticante de pole dance e acredita que o corpo é uma festa. Dá aulas de escrita criativa e sabe que escrever é a perdição e a salvação.Eparrei!

Sobre o blog

Divagações e conjecturações sobre comportamento, sociedade, mídia, o universo e tudo mais.

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